sábado, 10 outubro 2015 17:44

Questione della lingua: introdução e bibliografia

 

Dr. Ângelo Cristóvão,

 

Secretário da A.A.G.-P

 

Abril de 2004

 

      

 

       Escrever sobre um tema do que se tem publicado centenas de livros parece arriscado, porque muitos outros com maior competência têm tratado a questão muito melhor do que eu o possa fazer. O que pretendo, pois, não é apresentar um resumo de cinco séculos de história mas assinalar alguns dos aspectos que, na minha opinião, podem ajudar a entendê-la.

 

      O que me animou a indagar estes assuntos foi o conhecimento do texto de Lluís V. Aracil sobre a «História das Línguas Europeias». Trata-se de uma transcrição do seminário que ele leccionara em Ourense em 1988 sob o mesmo título. Posteriormente, o sociólogo valenciano ministrara um segundo, «Història de les llengües d'Europa», em 1990, Barcelona, cujo conteúdo complementa o primeiro. Esta introdução é, em certo modo, resultado das descobertas aracilianas. O meu intuito é continuar e acrescentar esta linha de investigação.

 

      A questione della lingua da Galiza data de há três décadas ou mais de um século, conforme aos critérios que forem utilizados. Em qualquer caso seria muito errada a pretensão de os galegos termos sido iniciadores deste tipo de debates. Os italianos já discutiam estes assuntos nos fins do quattrocento, tendo sido lugar-comum no seguinte século e tema habitual da Academia della Crusca. De tudo isto, na Galiza e em geral, nada sabemos. Até parece não ser percebida esta carência entre as pessoas que, à partida e pela sua profissão, poderiam estar interessadas.

 

       Que sentido faz, no século XXI, ler e escrever sobre a situação linguística existente há cinco ou mais séculos? No meu entender, ver como têm nascido ideias e movimentos culturais que, com o tempo, se têm tornado maioritários e universalmente difundidos. Diz o professor Conill, no seu artigo «Dir el sentit: una aproximació a la sociologia de Lluís V. Aracil» que a história das línguas europeias tem o valor do contra-exemplo, de explicação da situação atual em que as línguas nacionais se impuseram sobre outras que não tiveram a mesma evolução. Pode facilitar a compreensão de processos históricos de que os galegos temos sido agentes passivos, em grande medida. Pode ajudar-nos, enfim, a perceber a situação do português da Galiza a respeito das línguas nacionais.

 

 

 

     1. Contra os ‘séculos obscuros’: Rascunhos para a recuperação da memória

 

      Um dos grandes problemas históricos da Galiza, em questão de língua, é termos perdido muito cedo a ligação com os movimentos culturais europeus que conformaram a realidade presente. Se nos séculos XIII e XIV os galegos fizemos, através dos cancioneiros, algum contributo notável à cultura europeia, a nossa evolução posterior assemelha-se a um desaparecimento. Aracil assinala como a grandeza da literatura medieval galaico-portuguesa contrasta com a sua fragilidade. Uma literatura comum à Galiza e Portugal -até ao ponto de não poder-se atribuir uma grande parte dos autores a uma ou outra nacionalidade- e que desfrutou de elevado prestígio na corte castelhana, parece ter-se esvaído pouco tempo depois de grande parte do território originário: A Galiza. Não é um caso isolado na Europa. Catalão, Gaélico e Ocitano estiveram em situações semelhantes, com desiguais resultados. 

 

      Os professores de língua e literatura galegas costumam qualificar o período do qual carecemos de textos escritos ‘em galego’ -entre a lírica galaico-portuguesa e o ressurgimento do século XIX- como ‘séculos obscuros’, explicando simplesmente que não existiu nada, apenas a chamada ‘literatura de circunstâncias’, que nem literatura é. Entre os cancioneiros e o romantismo a Galiza perdeu o seu lugar na história e na cultura europeia. A explicação mais comum culpabiliza os Reis Católicos desta desgraça histórica. Tem a vantagem de pôr no exterior as causas, mas não pode alienar toda a responsabilidade dos agentes da sociedade galega. Basta dizer que outros países, durante esses séculos, produziram em cirscunstâncias semelhantes textos de valor em línguas vulgares, inexistentes na Galiza.

 

      Portanto, uma explicação cabal deste período histórico não pode continuar a consistir na transmissão da mesma ideia de vazio, falseadora e frustrante, que se repete todos os anos nas aulas do ensino universitário, no bacharelato, e em inúmeras conferências de personalidades entregues à difusão de um discurso sobre a língua que tem, por princípio e fim, a castelhanização. Um salto histórico de quatro séculos sem uma explicação do que, entretanto, tem acontecido no contexto europeu, sem dar a conhecer as claves para interpretar a história das línguas europeias, é uma mutilação motivada, quer no desconhecimento, quer na intenção de ocultar a história, quer em ambos os motivos.

 

      Primeiro, resulta evidente que o português escrito, na Galiza, não teve continuidade histórica. Parece trivial mas é fundamental salientar este facto por constituir uma pista fundamental para compreendermos com é que temos chegado à situação presente.

 

      Segundo, é também evidente que a língua vulgar continuou a ser falada, mas este facto não constitui um mérito preferente. A cultura é, por definição, por conceito, artificialidade. Contrariamente ao que afirmam todos os dias os regionalistas, e repetem de modo irreflexivo muitos ideólogos do nacionalismo em nome do povo galego, a transmissão natural da língua durante vários séculos não é meritória. Para uma caraterização ideológica das diferentes versões do que podemos chamar naturalismo suicida podemos ler o livro de Bolnow intitulado Lenguaje y educación. Verdadeiramente, o mérito teria sido, por exemplo, termos alfabetizado a população em proporções elevadas, mas nunca houve uma Escola Galega além da que se faz em castelhano. Infelizmente , ainda hoje muitos nacionalistas galaicos insistem na necessidade de o ensino público oficial ser garante da normalização linguística do ‘galego’, como se o Estado Espanhol estivesse moralmente obrigado a desnormalizar o castelhano.

 

      Recuperar o tempo perdido, ligar com os processos históricos que conformaram as línguas nacionais, conseguir o apoio e a solidariedade internacional -primeiramente de Portugal e, em segundo lugar, doutros países europeus- devia ter sido a tarefa principal dos escritores e políticos do ressurgimento, da Real Academia Galega, das Irmandades da Fala -constituídas em 1916- e, em geral, do galeguismo do século XX. Deixo para o leitor a avaliação sobre o nível em que estes objetivos foram atingidos.

 

      A mensagem que Aracil transmite na sua História das Línguas Europeias é clara: Há uns modelos culturais favorecedores das línguas. Não é preciso inventá-los: Preciso é conhecê-los. É isto que tratam os seguintes parágrafos.

 

     2. A Galiza e a Europa

 

      Para nossa sorte, o português que tinha nascido na velha Gallaecia continuou a desenvolver-se no Reino de Portugal, até converter-se em língua nacional e instrumento de comunicação nos cinco continentes. Vamos fazer uma comparação com o contexto exterior para tentar perceber a diferença que houve entre o que poderíamos chamar, historicamente, a Galiza que constituiu Portugal e a Galiza que ficou sob o domímio castelhano e, depois, espanhol.

 

      Enquanto o humanismo greco-latino entrava na Corte de D. João II nos últimos anos do século XV em Portugal, da mão de Cataldo Siculo Parisio, a mesma língua deixava de escrever-se na Galiza. Não pode negar-se a importância da dominação política e militar que os castelhanos exerceram sobre o Reino da Galiza, porém não pode utilizar-se como explicação para tudo quanto tem acontecido no desenvolvimento posterior.

 

      Alguns textos galegos que ainda podemos ler em bom português daquela época são os escritos notariais. Um exemplo é o Livro de Notas do Notário de Rianjo Aluar Peres, texto publicado sob a organização do professor antilusista Fernando R. Cabo Tato. Nesse texto observa-se que, em 1457, ainda a qualidade da linguagem notarial era boa. Fica patenteada, nas suas páginas, a dependência política da Galiza. Exemplo claro é a reclamação do castelhano Rodrigo de Luna, Arcebispo de Compostela, contra o rianjeiro Sueyro Gomes de Soutomayor, sob o título «Testimoyo autorisado sóbrela casa de Rriãjo» (pp. 145-149). Trata-se de um documento notarial longo -para o habitual nessa época- com o texto ‘oficial’, em português, seguido da carta em espanhol do arcebispo, respondida posteriormente na língua da Galiza pelo destinatário da carta, o citado Sueyro. Notário e nobre escrevem em vulgar galego; a autoridade político-eclesiásitica em castelhano: ficava estabelecida a hierarquia, que continuava sem interrupção até ao presente.

 

      Seguindo a exposição de Aracil, enuncio a seguir alguns dos os processos que configuraram as línguas nacionais e dos quais ficou ausente a Galiza:

 

     2.1. A introdução da imprensa, os processos de gramaticalização, o humanismo vulgar e as traduções para as línguas vulgares

 

      A imprensa tornou-se uma indústria a finais do século XIV, uma atividade empresarial generalizada que criou um público leitor. É claro que isto aconteceu apenas nalguns casos. Dois aspetos interessa salientar especialmente:

 

      Primeiro, obrigou os editores a fazer escolhas para a escrita, fomentando a sua unificação. No contexto do humanismo greco-latino publicaram-se as primeiras gramáticas das línguas vulgares. Na nossa os principais autores desta época foram Fernão de Oliveira (1536), João de Barros (1539) e Nunes de Lião (1576). Dois séculos mais tarde seria difundida oficialmente a Arte da Grammatica da língua portugueza de António José dos Reis Lobato (1770), durante o governo do Marquês de Pombal.

 

      Segundo, a difusão desta indústria ajudou também à promoção da língua vulgar reconhecida pelas autoridades dos reinos e principados da Europa, ocupando estas um espaço entre os meros vulgares orais e o latim, a grammatica, em que se desenvolvia a cultura não popular. A imprensa facilitaria, também, a difusão dos clássicos greco-latinos, primeiramente no original e, posteriormente, nas traduções para as línguas vulgares através do humanismo vulgar nos séculos XVII e XVIII. Ficava assim estabelecida a primeira diferença entre as línguas que atingiriam, já nessa altura histórica, um mínimo grau de difusão e conhecimento internacional, e outras que ficariam como meros vulgares restringidos à oralidade, como o português na Galiza.

 

      Uma tarefa fundamental do humanismo vulgar foi o fomento das línguas através da tradução das obras mais importantes em latim, o que Aracil define com uma “transferência de tecnologia”, para as respetivas línguas das nationes. É, evidentemente, o caso da Arte Poética de Horácio (Epistula ad pisones, 10 a .c.) traduzida pela primeira vez à nossa língua por Aquiles Estaço e publicada em 1553 em Antuérpia. Para o espanhol as duas primeiras traduções foram publicadas entre  1558 e 1591, por Francisco Sánchez de las Brozas, El Brocense. Coisa semelhante acontece com as outras línguas europeias. A Arte poética era estudada pelos bacharéis e serviu de modelo literário durante séculos. A época em que foi traduzida, para cada língua, serve de indicação do estádio de desenvolvimento das comunidades linguísticas na Europa.

 

      Capítulo especial merece a tradução da Bíblia e o papel da Igreja no controle das oficinas tipográficas, na maior parte dependentes dela. Dois aspectos interessa salientar:

 

      O primeiro, citado por Aracil, é a diferença evidente entre a Igreja católica e a reformada. Uma das ideias defendidas pelos pregadores protestantes era a necessidade de aproximar a palavra de Deus do povo. Por isto traduziram a Bíblia. É dentro da Igreja que surge a necessidade de traduzir e dignificar a língua vulgar, e isto só podiam fazê-lo pessoas com conhecimentos de grammatica. Nos países católicos só os autorizados, os cregos, podiam ler e interpretar as Sagradas Escrituras. Por isso a introdução dos vulgares na liturgia se produziu mais tarde. Como é lógico, os cregos protestantes fomentavam a alfabetização em vulgar porque isto permitia aos fieis terem acesso direto ao Livro e participarem em igualdade na liturgia. Os fieis já não precisavam intermediários para o diálogo com Deus e, além do mais, podiam fazê-lo na sua língua, sem necessidade de aprender latim. Séculos mais tarde, no XIX, saber ler e escrever tornaria-se condição indispensável da dignidade pessoal e social.

 

      Esta diferença histórica entre católicos e protestantes é semelhante à existente no procedimento judicial. Tradicionalmente, na Inglaterra, por exemplo, o cidadão pode representar-se a si mesmo perante a justiça, renunciando mesmo ao advogado se for o seu desejo. Nos países católicos estamos necessariamente representados por um letrado. O mesmo nome implicava a suposição de o representado não saber de letra: ser analfabeto.

 

      As traduções da Bíblia foram um indício do nível de desenvolvimento das línguas europeias. No nosso caso o Antigo e o Novo Testamento foram traduzidos por João Ferreira de Almeida (1628-1691). Naturalmente não era católico mas presbiteriano, e exerceu as suas funções na Holanda. Contudo, a Bíblia completa em português viria a ser impressa em 1753, provavelmente em Amesterdão. O caso mais citado nas bibliografias europeias é a tradução que fez Lutero (1486-1546) para o Alemão. Todavia, a primeira publicação parcial nesta língua data de 1471. Cita Aracil ainda o precedente de Meister Eckhart (1260-1327).

 

      Além do caso precoce do alemão, vale a pena virar os olhos para o catalão, em cuja língua a primeira edição completa da Bíblia data de 1478. Na opinião de Adrian Hustings isto fala muito favoravelmente da cultura medieval catalã (ou aragonesa). A evolução posterior não condiz com este precedente mas fica como um indício do que poderia ter sido o Reino de Aragão se o seu desenvolvimento político tivesse sido bem sucedido. Em castelhano traduziu-se pela primeira vez no século XVI mas, por algum motivo, não ficou nenhum exemplar.

 

      O impulso para as traduções surgiu, pelo menos em grande parte, no seio da Igreja e teve por protagonistas personagens que, maioritariamente, seriam excomungados e perseguidos por heresia pela Igreja católica. A principal instituição da Igreja criada para reprimir os hereges foi a Inquisição, encarregada, entre outras tarefas, de destruir os livros proibidos e perseguir esses escritores. Uma edição de 1597 do Index Librorum Prohibitorum, do Papa Inocêncio XI, explicita na «Regula IV» os critérios de censura, não apenas para as edições de livros sagrados mas, em geral, qualquer publicação em língua vulgar, com ordens explícitas para bispos e outras autoridades sobre os procedimentos a ser utilizados. A mesma regula, acrescentada de outras com conteúdo semelhante, seria publicada em sucessivas edições.

 

      2.2. A participação na Respublica Litterarum e o iluminismo

 

      Resulta difícil resumir o que tem significado a República Literária na história da cultura europeia. Limitar-me-ei a salientar alguns aspetos. Dela fizeram parte as personalidades mais notáveis da Europa durante mais de dois séculos. Era o equivalente a uma classe inteletual internacional com regras de admissão e de comportamento concretas, cuja característica principal consistia na difusão livre e universal do conhecimento (censuravam a ocultação das descobertas entre os membros), o fomento das boas relações entre os povos e o emprego do latim para a comunicação interna e as publicações. Esta Respublica continuou a existir apesar das guerras de religião e outras lutas, representando uma consciência de comunidade europeia numa unidade que ultrapassava os Estados e as diferenças religiosas.

 

      O jornal inteletual mais impotante da República Literária, e da Europa, foram as Acta Eruditorum. Publicadas em Leipzig de 1682 a 1782 -de 1732 a 1782 como Novo Acta Eruditorum- tratavam temas de Libri Théologici, & ad Historiam; Ecclesiastican spectantes; Libri Juridici; Libri Medici & Physici; Libri Mathematici; Libri Historici, Geographici, Miscellanei. Nele podemos ver nomes de autores franceses, ingleses, alemães, italianos e até algum português, como Petri Almeidæ (Pedro de Almeida): «Commentarius in C. Suetonis Tranquilli de XII Casaribus Libros VIII», mas provavelmente não haja um só galego.

 

      A Academia Francesa seria criada pelo Rei para fazer concorrência contra os membros da República Literária que, num princípio, nem faziam caso da sua existência e, posteriormente, acabariam por se integrar nela. Foi este o âmbito em que nasceram noções como a opinião pública. Foi na França onde os correios foram impulsionados para favorecer a comunicação entre os membros da república das letras. Foi, evidentemente, o âmbito e o contexto inteletual do iluminismo.

 

      Quando este foro transnacional dos notáveis europeus se dissolveu, a meados do século XVIII, constituiram-se Repúblicas Literárias nas respetivas nações. Esta dissolução foi percebida como um desastre por pessoas como Germaine de Staël-Holstein (Madame d’Estaël), cujo texto mais conhecido é De l’Allemagne (1820). Não só pela perda do uso do latim e a dissolução da unidade entre os sábios da Europa; também pela ameaçante situação que se estava a criar.

 

      Houve uma edição alemã, as Deutsche Acta Eruditorum, de 1712 a 1739, o que indica em que medida Alemanha esteve no centro da cultura europeia e continuaria a estar durante muito tempo. E questão que mereceria maior comentário.

 

      Em termos de história sociolinguística da Europa, a situação atual de minorização linguística, a hierarquia entre o castelhano e o português da Galiza -e também do catalão, do bretão, do basco, etc.- cujo desequilíbrio já vinha de séculos, acelerou-se a partir de meados do século XVIII. O castelhano -como o italiano, francês, alemão, inglês, português, polaco e alguma outra- substituiu o latim nas suas funções, nomeadamente no ensino, e tornou-se língua nacional.  Por exemplo, comprovamos como em Portugal se ensina a «Gramática latina» do P.e Manuel Francisco de Miranda (1866-1921), com explicações em português e reeditada até meados do século XX. Na Espanha (incluída a Galiza), difunde-se a «Gramática hispano-latina», de Raimundo de Miguel (1816-78) cuja primeira edição é de 1848.

 

      Regressemos ao século XVIII. O risco que implicava essa ruptura como o passado, em que a língua principal tinha sido o latim, era percebido pelos seus promotores como inevitável, e não isento de alguma incertidão. No «Discours préliminaire» de D’Alembert, da Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers  (1751), achamos muitas evidências da mudança histórica que se estava a pôr em andamento. Os seguintes parágrafos confirmam a citação que Aracil realizava na sua História das Línguas Europeias: 

 

      «Começou-se a sentir que o bom, por ser exprimido em língua vulgar, não perdia nada das suas vantagens; que adquiria ainda a qualidade de ser mais facilmente percebido pelo comum dos homens, e que não tinha relevância nenhuma a língua em que fossem ditas as coisas, comuns ou ridículas e, com maior razão, naquelas que deveríamos falar pior. A gente de letras pensou, então, em aperfeiçoar as línguas vulgares e procurou dizer nas suas línguas aquilo que os anciães tinham dito nas suas” (p. 130).

 

      «Tendo-se estendido a nossa língua por toda a Europa, julgámos que era a altura de esta substituir a latina que, depois da renascença das letras, tinha sido a dos sábios. Acho que é bastante mais excusável, para um filósofo, escrever em francês do que um francês fazer versos latinos; convenho em que este uso contribuiu a tornar as luzes mais gerais se, entretanto, aumenta realmente o espírito do povo, que se estende a superfície. Entretanto, daí resulta um inconveniente que devemos prever. Os sábios das outras nações a quem nós temos dado exemplo, podem acreditar, com razão, que eles poderiam escrever ainda melhor nas suas línguas do que na nossa. Então, Inglaterra imitou-nos; Alemanha, onde o latim parecia ter-se refugiado, começa lentamente a perder o seu uso: não duvido que serão seguidos em breve pelos suecos, daneses e russos. Assim, antes do fim do século XVIII, um filósofo que quiser instruir-se bem nas descobertas dos seus predecessores, terá de carregar na sua memória entre sete a oito línguas diferentes e, depois de ter consumido para as aprender o tempo mais preciado da sua vida, morrerá antes de se começar a instruir». (p.153)

 

      Talvez a maior virtude, o maior contributo das línguas nacionais, tenha sido facilitar a alfabetização da população e, portanto, a difusão do conhecimento, rompendo com a inveterada hierarquia entre letrados e iletrados, cuja dilução, em séculos passados, era apenas uma hipótese. O outro aspeto positivo é ter elevado ao nível superior a língua do povo, simbolizando a culminação de séculos de progresso de determinadas línguas e literaturas, não todas, apenas uma parte das existentes na Europa.

 

      D’Alembert e os outros enciclopedistas tinham consciência dos riscos que implicava a supressão do latim como interlíngua. Este tinha a vantagem de não ser falada por ninguém como língua natural, era de todos os países mas de nenhum em concreto. Era veículo da educação e servia para transmitir uns conhecimentos, difundidos por toda a Europa. Qualquer outra que pretendesse ocupar esse rango teria vários problemas, o primeiro dos quais seria o âmbito restrito de difusão. O segundo, que seria a língua de um povo concreto. Se todos os membros da república literária pretenderem fazer o mesmo -com todo o direito- produzir-se-ia a decomposição do espaço comum e uma concorrência permanente. E nesta situação não todas as línguas poderiam concorrer, como a história posterior demonstrou. Neste processo histórico línguas como o ocitano, o bretão, o português na Galiza ou mesmo o gaélico na Grã Bretanha e Irlanda ficaram fora do jogo, e provavelmente continuarão assim.

 

      Aracil tinha posto em evidência a ausência de crítica ao modelo de ‘língua nacional’ num artigo de 1984. Se o modelo for universalizado, a maior parte das línguas do mundo ficam excluídas e numa clara tendência à desaparição. O debate parece ter estado oculto. Todavia, o problema continua a estar presente[i].

 

      Temos visto que, a meados do século XVIII, a dialética latim/vulgares se resolveu com a progressiva substituição do primeiro pelas segundas, a ritmos diferentes conforme ao nível de desenvolvimento político, económico e cultural dos diversos países europeus. O abandono do latim como língua de comunicação internacional foi precedente claro dos nacionalismos que, dentro dos territórios nacionais, serviram para duas funções complementares: ‘libertar’ umas línguas e ‘oprimir’ outras.

 

      Os nacionalismos começavam a determinar o futuro do continente e do Mundo num período que vai de Napoleão até agora, e que Aracil denominou a “Guerra dos Duzentos anos”. Finkielkraut caracteriza também esta situação em La défaite de la pensée, livro recomendável, que começa com uma citação do texto de Julien Benda La trahison des clers.

 

      A maior prova da difusão universal e o triunfo total do modelo nacional de organização das sociedades, consiste na incapacidade generalizada para concebermos por outros modelos as relações entre as comunidades linguísticas, e pelas reações ‘naturais’ contra quem criticam a necessidade do nacionalismo como ideologia fundamental da sociedade ou, simplesmente, salientam as suas contradições. 

 

      A Galiza fez contributos ao iluminismo com pessoas salientáveis como Feijó, Sarmiento, Cornide, Lago, Cernada e Sobreira... todos em castelhano. Sobeja dizer que não houve república literária galega, numa altura histórica em que o português se tornava língua nacional.

 

     2.3. O período nacionalista

 

      No século XIX, o das revoluções liberais e o romantismo, acelerou-se a dissolução do antigo regime e as velhas formas de relação entre as línguas. A introdução dos Bourbões no trono espanhol, os acontecimentos posteriores à guerra de independência contra o exército de Napoleão, a Constituição de Cádiz de 1812, a Lei Moyano de instrução pública, a reforma da organização provincial de Javier de Burgos (1833), passando a Galiza das 7 províncias à 5 actuais, a incipiente difusão da escolarização -toda em castelhano- configuraram o processo de difusão desta língua na Galiza. O castelhano substituiu o latim nas suas funções, na administração pública e no ensino, na edição de livros e nas publicações periódicas. Na Igreja o uso público e oficial do castelhano esteve tradicionalmente restringido às homilias mas, depois do Concílio Vaticano II, generalizou-se tornando-se língua única da igreja católica.

 

      Foi no século XIX que se iniciou a recuperação da consciência linguística da Galiza com Rosália, Curros e Pondal, numa corrente cultural e política simultânea com Catalunha. Porém, em geral, tanto num como noutro país isto levou-se a termo como atividade folclórica, única forma não conflutuosa de dedicar um espaço aos assuntos ‘regionais’ sem pôr em causa a unidade da nação espanhola. O processo de constituição da Real Academia Galega e a sua evolução até ao presente evidencia essa situação. Os presumíveis notáveis galegos, nomeadamente Murguia, para não se confrontar com os escritores contrários à língua popular, nomeadamente Emília Pardo Bazán, demoraram vários anos o processo de criação desta instituição.

 

      Podemos indagar na história dessa instituição espanhola através dum livro redigido por Elisardo López Varela: Unha casa para unha lingua. A Real Academia Galega baixo a presidencia de Manuel Murguia (1905-1923). Nele se acham múltiplas evidências de que, a RAG, para além das intenções declaradas, nunca exerceu as suas funções como “academia” e “galega”. Os acontecimentos das últimas décadas e os mais recentes de Julho de 2003[ii] confirmam este diagnóstico. O precedente imediatamente anterior à sua fundação em 1905 foi a «Asociación Folk-lore gallego», cujo discurso inaugural foi lido pela escritora em espanhol Emilia Pardo Bazán sobre o tema “Folk-lore”. A mesma escritora naturalista foi presidente honorário da RAG inicial junto com Curros e Murguia. Há uma carta de Curros publicada em La Tierra Gallega , Habana, 19-5-1895 em que diz, perante as acusações dalgum jornal que acusava os promotores da R.A.G. de “galleguismo”:

      «Receiam alguns, dizia o orador, para prestar-nos a sua ajuda, que nesta Academia possa incarnar-se o regionalismo galego, e eu tenho de dizer muito claro e alto que nada tão longe deste asserto. Aqui cabem os galegos de boa vontade, os regionalistas e os que não o são no senso estrito da palavra, e até os que não são galegos e, contudo, amam a Galiza, como eu a amo, sem o ser” (pág. 32)

 


      Poderia argumentar-se que, realmente, ele pensava fazer o contrário do que dizia, mas a história demonstra ter acontecido justamente o que ele prometeu. Nessa época tinham grande difusão, na literatura, o naturalismo e o romantismo, cujas aplicações ao português da Galiza, têm continuidade na situação atual. O ‘galego’ continua a ser o objeto folclórico a que se dedicam a «Real Academia Galega» e o «Instituto da Lingua Galega».

 

      A situação em que se acham os notáveis galegos, os de hoje como os de ontem (e Murguia e Curros pertenciam, sem dúvida, a este género), foi perfeitamente caraterizada por António Gil, no seu livro Silêncio ergueito. Do prefácio (pp.7-53) saliento dois aspetos igualmente relevantes, a constituirem duas faces do mesmo problema: 1. O silenciamento, nos âmbitos institucionais e meios de comunicação (e a exclusão e até a perseguição académica) a que são submetidos quem pretendem dignificar a língua nos discursos escritos,  nos usos linguísticos, na docência, na administração pública, ou em quaisquer outros âmbitos sociais. 2. A situação de dependência que a notabilidade galega tem respeito da espanhola e a sua incapacidade para se desenvolver como auténticos notáveis da Galiza.

 

     3. Dante e a questione italiana

 

      A expressão questione della lingua faz referência a um debate secular produzido na Itália sobre o modelo de língua comum e a distribuição de usos sociais com o latim. Pode considerar-se iniciada a começos do século XVI e rematada a meados do século XIX, com a constituição do Estado Italiano e o triunfo definitivo desta língua sobre o latim.

 

      Todos os autores coincidem em notar a publicação da Eloquência vulgar (De Vulgari Eloquentia) de Dante Alighieri Florentino (1265-1321) como obra fundamental para compreendermos a questione.

 

       Deste texto Interessa salientar dois aspetos: Primeiro, a precocidade do autor, cujo texto exprime no século XIII umas ideias que só achariam o contexto cultural apropriado para o seu desenvolvimento dois séculos depois, durante o primeiro humanismo italiano.

 

      Segundo, como dado implícito e raras vezes comentado, é que Dante escreveu o Vulgari Eloquentia em latim, não em vulgar. O seu latim era o medieval vigente na sua época, ao que Dante tinha acrescentado termos e expressões alcunhados pela escolástica. Neste sentido não pode comparar-se em qualidade ao latim renascentista, em que os autores procuravam imitar os autores antigos, renovar a técnica literária e acrescentar o léxico necessário para o tornar apto para a expressão em todas as ordens.

 

      Do ponto de vista da ideologia nacionalista que nos impregna -e não importa qual for o nosso país de origem, para o caso é indiferente- poderíamos julgar uma incoerência escrever em latim para promover o vulgar. Ora, aquela língua não era percebida socialmente como concorrente mas complementar com os vulgares. Utilizando a terminologia sociolinguística podemos dizer que a relação entre latim e vulgares estava estabelecida através dalgum tipo de diglossia. Esta situação, a utilização do latim e das línguas vulgares para funções diferentes, manteve-se, pelo menos, até meados do século XVIII. Foi locus communis secular cuja solução para o ensino oscilou entre a necessidade de manter um equilíbrio na utilização das duas línguas, ou a conveniência da supressão de uma das duas. No capítulo “Latino contro volgare” (págs.47-50) do livro de Maurizio Vitale podemos ler um episódio deste debate e compreender o contexto.

 

      Portanto, Dante escrevia para os que sabiam ler em latim, que era uma minoria, mas também eram os únicos a quem poderia interessar o tema. O vulgar era utilizado para os assuntos de menor importância. Diz Curtius: «O uso poético do Volgare era permitido só sujeito a muitas precauções. Eraaceitável apenas para alguns temas: bem-estar, amor e virtude (salus, venus, virtus) e só para as canzone» (p.354). Lembremos que Petrarca escreveu em italiano os Divertimentos Vulgares. Este, como Dante, Bocaccio e a maioria da sua época, eram escritores em língua latina que fizeram alguma coisa, acidentalmente, em vulgar. Para as coisas ‘sérias’ e de maior difusão não utilizavam a língua naturalis. Esta situação prolongou-se não durante umas décadas mas durante séculos, e define uma parte da história do Ocidente.

 

      Um enorme paradoxo respeito da língua latina, a evidenciar a distanciação respeito da nossa própria história, salientado por Aracil, é que, na atualidade, quando os professores desta língua clássica leccionam nas faculdades ou nos licéus de bacharelato, sempre se referem ao latim clássico, aproximadamente até ao ano 300, esquecendo quase toda a história da Europa posterior, cujos textos mais relevantes foram redigidos, até meados do século XVIII em latim. Isto tem uma grande relação com o que Aracil chama o esquecimento do anterior, com a pretensão de imemorialização que o nacionalismo exerce sobre a história. Esquecer e até suprimir totalmente o latim do ensino faz com que a língua nacional se situe no meio e sozinha, sem concorrência histórica anterior, transmitindo a idea de a situação presente datar de sempre, de não ter origem (nem final).

 

      A questione pode perceber-se, historicamente, como o processo de conversão das línguas vulgares, em concorrência com o latim, em línguas nacionais. O projeto de Dante era o da dignificação do vulgar, que devia sofrer um processo de apuramento, aprimoramento e escolha. Tinha consciência do seu protagonismo pessoal, cujo labor consistia em construir e não descobrir: fazer e não esperar que outros fizessem. Dante foi um notável que assumiu diversas responsabilidades na vida social e política do seu tempo, que o levaram ao desterro por décadas.

 

      Para uma mínima introdução ao Vulgari eloquentia vale a pena utilizar a edição bilingue latim-espanhol de Gil Esteve e Rovira Soler, na muito recomendável coleção da editorial Palas Atenea, em que os autores realizam uma introdução da que traduzo o seguinte parágrafo (pp.16-18):

 

      «Dante escreve constantemente, e na sua escrita vai do teórico, que no Vulgari Eloquentia descreve o quadro linguístico da Itália de fins do século XIII e começos do XIV, propondo e procurando uma unidade da língua onde na prática quotidiana existia uma realidade absolutamente diferenciada, ao escritor de sucesso na História, que depois de morto, as línguas não toscanas acabam por ser reconhecidas pela comunidade como meios de expressão restringidos à sua geografia regional e se convertem, na consciência dos cidadãos de Itália, em dialetos ou, no máximo, tingem o considerado koiné, no plano ideal, convertendo-os em italianos regionais, no único italiano existente na realidade falada. Destarte, o toscano acaba por se tornar italiano no plano nacional, não só a nível de reconhecimento oficial mas também na consciência dos falantes».

 

     3.1. O pensamento linguístico de Dante

 

      Em La teoria linguistica di Dante. "De vulgari eloquentia": discussioni, scelte, proposte, Ileana Pagani cita Marigo para salientar dois conceitos fudamentais a atravessarem a obra linguística dantesca: locutio vulgaris naturalis e locutio secundaria artificialis. Estes são contrapostos à “copiosa produção doutrinária de «eloquentia» latina”. A composição das relações entre estes dois conceitos na procura da oposição ao predomínio do latim é guia para a compreensão do Vulgari.

 

       Locutio naturalis faz referência à criação divina da linguagem. Diz Pagani: “Marigo situa o significado de locutio vulgaris naturalis no plano do universal primigénio «[...] qui si parla in astratto della facoltà del linguaggio infusa da Dio all’uomo colla creazione [...]» (Commento, p. 9, nota 23)”. Identifica-se, pois, com a natureza originária, com Deus. A nobreza, potencial nos vulgares, só pode realizar-se com o cultivo literário que é uma obra humana, portanto, imperfeita.

 

      O confronto entre grammatica (latim) e locutio vulgaris (italiano) recebe diversas articulações: a locutio primaria (linguagem natural) é nobre por ser produto de Deus. A locutio secundaria é produto da arte humana, que constitui uma imitação imperfeita da natureza. A locutio vulgaris histórica mas particularíssima de Adão é nobre em potência e em acto, porque nasceu diretamente de Deus. Uma qualquer locutio vulgaris histórica é potencialmente nobilior, contudo, não necessariamente em acto.

 

      Estamos perante a enorme tarefa de dignificação do vulgar, para cujo fim o primeiro e principal instrumento é a gramática -imutável, conforme ao pensamento dantesco- a estabilizar a língua literária e torná-la em instrumento de comunicação. A locutio vulgaris naturalis é proclamada nobilior por Dante, pois há escritores que a têm dignificado. Originariamente o vulgar reflete, aos seus olhos, o sinal de uma fatal decadência (babel) e dissolução. Esta pode ser superada por uma reconstrução racional de uma unidade espiritual. Só o hebreu tem permanecido num plano especial: nenhuma outra língua pode participar da sua nobreza-perfeição, por ser imagem concreta do mundo pré-babélico.

 

      O quadro babélico comporta uma imagem em que os vulgares são concretização do «terrível castigo da confusão das línguas». O homem deve esforçar-se, pois, por encontrar, pela razão, os instrumentos linguísticos para superar a multiplicidade e mutabilidade caraterísticas das linguagens vulgares, reconquistando assim a primigénia unidade perdida.

 

      Dito por outras palavras: face à situação pós-babélica, caraterizada pela «tendenze irracionali e disgregatrici della natura corrotta» levanta-se o valor positivo da racionalidade-regularidade-estabilidade (literatura e gramática).

 

      Outros binómios a explicarem a concepção linguística de Dante são: geral-particular; originário-corrupto e potência-ato. Este último confere-lhe uma fortaleza extraordinária e constitui uma antecipação histórica da concepção da dignitas homini renascentista. Giovanni Pico della Mirandola na sua Oratio de Hominis Dignitate de 1487 (Discurso sobre a dignidade do homem) afirmava, em contraposição à concepção escolástica, que o homem tem em si a capacidade intrínseca de superação das suas debilidades (o pecado de Adão e Eva) e salienta a livre escolha que Deus lhe concedeu:

 

      «Que a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-as, isso é possível» (p.55).

 

      A língua, enquanto produto humano dignifica-se, como o homem, pelo esforço, podendo assim superar o pecado de Adão pois, no fim de contas, o homem é um espelho de Deus. O volgare dignifica-se aproximando-se dos padrões estabelecidos e preexistentes em latim.

 

      O binómio potência-ato permitiria maiores comentários pela sua aplicação a múltiplos casos. Na concepção dantesca, potencialmente nobre é a língua vulgar na voz do povo. Para o ser em acto precisamos que seja realizado pela voz dos escritores excelentes, especialmente através da poesia. Quanto à língua literária esta é, para Dante, a língua gramatical, tendo um caráter imutável, o que por vezes fica contradito pelas suas próprias palavras, porquanto aceita dalgum modo o conceito de evolução histórica.

 

      Esta parece ser a grande conquista de Dante: ter percebido o conceito de naturalidade e, ao mesmo tempo, a necessidade de mudança da língua. Esta caraterística de mudança atribui possibilidades expressivas ao vulgar e torna-o oposto ao latim, neste aspeto. Dante tomou consciência, assim, do devenir histórico das línguas, partindo do conceito de locutio vulgaris naturalis.

 

     3.2. A questione della lingua

 

      O texto de Maurizio Vitale citado na bibliografia é o mais recomendável para esta parte. Na introdução (pp.9-12) salienta os conceitos desenvolvidos através das 799 páginas do livro que constitui um compêndio de cinco centúrias de publicações e discussões sobre a língua comum. O autor percorre a história do italiano começando no século dos gramáticos, o XVI, em que também achamos uma preocupação similar nos países que receberam os ideiais humanistas.

 

      A questione começara a debater-se publicamente na data precoce de 1435, em duas obras de Flavio Vionni e Leonardo Bruni, que tinham por tema a existência de duas línguas, uma literária e outra vulgar, tanto no latim quanto no Italiano. Estava já estabelecida a primeira dimensão: a disputa entre as duas línguas sobre o lugar -académico, institucional- que a cada uma correspondia. A segunda dimensão, o italiano literario em confronto com os dialetos, seria tema principal da Academia della Crusca, solucionada no século XVI com uma tendência arcaizante e no XVIII modernizante, sob a base do florentino. A unidade só seria conseguida no século XIX, na altura da constituição do Estado Italiano.

 

      O primeiro livro considerado propositadamente académico é o Vocabolario degli Accademici della Crusca, texto amplo e organizado com intuito normativo conforme aos critérios de Lionardo Salviati (1539-1589), cuja primeira edição é de 1612, existindo diversas posteriores. Salviati foi um defensor do tradicionalismo linguístico e principal fundador da Accademia. A criação de uma posterior anti-Crusca prova a polémica que se seguiu entorno à língua comum.

 

      Um autor imprescindível nesta época é Sperone Speroni (1500-1588) cujo texto mais conhecido é os Dialogi (1542), entre os quais está o seu Dialogo delle lingue. Um extracto pode ler-se no livro de Amadeu Viana (pp.51-63) ou no anteriormente citado de Vitale (pp.630-632). Durante os séculos seguintes a dinâmica entre cruscantes e anti-cruscantes define a dialética sobre a língua comum. Inúmeros textos e autores concedem a este problema o rango de questão pública.

 

      O escritor que vincou a definitiva estabilização da questione foi Alessandro Manzoni (1785-1873). Já na introdução ao Fermo e Lucia (1823) exprimia as dificuldades com que um escritor em italiano se defrontava para escrever um romance, pela incerteza no italiano literário (ausência de fixação unívoca da escrita) e a sua “pobreza” (lexical).

 

      Ele procurava uma língua comum para todo o país, moderna, de uso e compreensão uniforme, e fê-lo através do tosco-florentino, não numa linha arcaizante, mas adatando-o à linguagem da sua época. A independência italiana (1868) produziu o contexto adequado para o fomento da unidade. Nessa altura escreve Dell’unità della lingua e dei mezzi per diffonderla, como presidente da Commissione da Pubblica Istruzione, com a encomenda de «Proporre tutti i provvedimenti e i modi coi quali si possa aiutare e rendere più universale in tutti gli ordini del popolo la notizia della buona lingua e della buona pronunzia» (op.cit., p.446), para cujo fim Manzoni propõe oficialmente a difusão de um vocabulário, o do florentino falado, que recebeu diversas críticas e uma forte oposição em certos sectores. Este texto propugnado por Manzoni começaria a publicar-se em 1897, sob o nome de Novo vocabolario della lingua italiana, e responsabilidade de Giambattista Giorgini (1818-1906), registando diversas edições posteriores..

 

      As ideias manzonianas triunfaram definitivamente favorecendo a unificação do italiano. Este modelo, assumido e difundido pelo Estado, constituiu o impulso definitivo para a sua universalização.

 

NOTAS:  

 

[1] Para pôr remédio a este problema têm-se inventado diversas soluções, a maior parte das quais consistem em olhar para outra parte. Alguns inventaram línguas como o esperanto. Outros confiaram o futuro das línguas ameaçadas à mercadotecnia e aos investimentos em propaganda, como no caso de muitos países anglo-saxónicos. Uns terceiros, procedentes de uma esquerda assente no anto-engano através da degradação do conceito de língua, dedicaram-se a fazer jogos de palavras. Este é o caso mais frequente no nacionalismo galego. Distorcendo as teorias do relativismo cultural, decidiram que todas as línguas são, pelo facto da sua existência, línguas nacionais. Julgaram que podiam apanhar um atalho e resolver o problema declarando-as todas oficiais. Ao mesmo tempo, tornaram politicamente incorretas expressões como língua de cultura. Estes defensores da “lengua do pobo” dizem que o galego, pelo facto de existir, já merece este qualificativo. A essência deste esquema consiste em que, se todas as línguas são nacionais, já não é preciso fazer nenhum esforço para as dignificar, não é preciso percorrer nenhum caminho. Alguns chamam a isto um ponto de vista. Aracil chama-o um ponto de cegueira. Seria muito interessante analisar, neste sentido, como se tem difundido na Europa o relativismo cultural, a começar pelas interpretações das obras de Claude Lévy-Strauss. Leia-se, a este respeito, Raça e Cultura.

 

[1]  A R.A.G. procedeu a uma leve mudança nas suas Normas Ortográficas e Morfolóxicas, que não alivia a radical dependência que mantém respeito do castelhano. Veja-se a contestação que algumas associações culturais publicaram em 17 de Julho de 2003, assinada depois por mais de 500 pessoas: http://www.lusografia.org/amizadegp/comunicado%20conjunto.htm

 

 

 

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Quem desejar ampliar a bibliografia sobre a questione italiana pode continuar no seguinte endereço:

 

http://www.uni-duisburg.de/Fak2/FremdPhil/Romanistik/Personal/Burr/Norm/ Questione/biblio.shtml