Celso Álvarez Cáccamo
24 de Setembro de 2003
Pouco se sabe em geral nesse lugar que por convenção chamamos Portugal do que acontece em matéria de língua(s) (e de muitas outras cousas) nessoutro lugar que por convenção chamamos a Galiza: refiro-me à parte da Galiza na altura submetida (como todos os países naturais) aos efeitos dum Estado, o Reino de España, em cujo centro mora um enorme eñe imperial. Na realidade, as cousas da língua na Galiza são tanto muito complicadas como muito singelas. Tentarei resumi-las pobremente, para ver o comum no respeitante ao papel da língua na vida diária.
É sabido, isso sim, que na Galiza se falam dous idiomas. Do espanhol, nem direi muito: é uma forma de espanhol que não se pode identificar com o falado na Andaluzia ou na Bolívia, mas que, na mente de muitos (esse prodígio de catalogação da realidade), é “o mesmo”. Da outra e primeira língua da Galiza, o português --que coloco em segundo lugar simplesmente para poder estender-me mais--, direi quase o mesmo: o português galego não se pode identificar plenamente com o alentejano ou o carioca; por isso (e aqui vem a diferença), na mente de muitos é “outra cousa”, “outra língua”.
Qual é a fonte de tal divergência no tratamento destas duas línguas na Galiza? (a própria, que é o português, e a historicamente alheia e agora socialmente dominante, que é o espanhol). Que faz o Estado espanhol para impor tal distinção nas mentes? E que não faz o Estado português para restaurar o equilíbrio na visão das línguas na Galiza?
Simplesmente, o Estado espanhol impõe sobre nós as letras: a palavra escrita, a cultura escrita, o sistema educativo em espanhol... enfim, a ignorância do próprio como método. Por meio do sistema educativo e doutros dispositivos criam-se os contrastes entre os falares “regionais” galegos (periféricos, quase atávicos, perdidos num recanto dessa tristíssima piel de toro, e portanto “tolerados” como curiosidade) e a letra impressa espanhola, que da sua ortografia até ao discurso vem embebida de ânsias nacionais espanholas, quer dizer, coloniais.
Mas, por acaso não é isto o que faz o Estado português com os falares dos seus súbditos? Não impõe o “ão” onde se diz o “om”, o “ou” onde se pronuncia “o”, o “v” onde se realiza o “b”, o “também não” onde existe o “tampouco”? Por acaso não cria o Estado português miragem de unidade da mesma maneira? Sim, e não. Portugal estabelece estas diferenças (sempre de classe) entre falares e escrita, e portanto entre grupos sociais, sobre e contra a sua própria língua, o qual não deixa de ser um mecanismo de dominação dos estados tão comum que se torna, por obediência, em direito dos cidadãos ocidentais a serem correctamente disciplinados na Língua.
É isto exactamente, nem mais nem menos, o que queremos muitos galegos e galegas (provavelmente muitos mais do que se pensa): que a nossa língua escrita, a que nos divide e classifica como sábios ou parvos, como pobres ou ricos, seja o mesmo instrumento que têm outros países de língua comum. Não queremos escrever o galego em espanhol: queremos o direito a sermos dominados, como qualquer país ocidental normal, pola Língua própria, que no nosso caso é a portuguesa. E nesta matéria Portugal inibe-se porque cai do outro lado dum rio inexistente. Má sorte, ou má política de estado?
Se as cousas fossem normais na Galiza, nem este textinho seria necessário: falaríamos dos assuntos que têm importância.
(Artigo publicado na edição impressa de 24 de Outubro, pág. 10).