Prof. Dr. António Gil Hernández, da A.A.G-P.
2 de Maio de 2001 (2ª Versão)
Há tempo que mais cada vez observo (e cada vez menos quereria observar) o facto de a poesia, aparentemente intimista, de qualquer autor galego rebordar do indivíduo para o social, quer dizer, para o político: é tendência espontânea, mesmo negada, mas evidente ao observador agudo.
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Em Herba do tempo (por que não «Erva do tempo»?), poemário de que é autor o Prof. Xosé Abeal, oferece-se-me essa hipótese desde o primeiro poema, «Camiños incontables percorrín»: “camiños”, “mundo”, “realidade”, “cousas” exprimem o chamado do outro, antes de mais humano e vivente (apesar, por vezes, da letra em contrário). Mas é sobretudo “acougo” (“dorme no remol do acougo”) a sublimar o desejo (ou mais bem anelo) de convivência feliz que (a meu ver) inspira, procuradamente sem sucesso em muitas, cada uma das sequências do poemário. “Arestora paxaro son voando / pola nudez das cousas en delicia” compendia à partida a minha impressão: A primazia do presente (“arestora”), a idealização da saudade (“paxaro”, “voando”), a procura da identidade não mista (“nudez das cousas”), o gosto de viver, de conviver (“en delicia”), porquanto dificilmente os humanos somos como pessoas o que não nos fornece o grupo.
Firma-me nesta impressão o segundo poema «Xa veñen as palabras, as palabras». O poeta repete o substantivo “palabras”, plural, como se tentasse ainda mais socializá-lo, e encavalga o segundo, o reiterado, ao adjetivo “acesas”, como lhes (a “palabras”) atribuindo as notas de “luz” e de “fogo”, assemade: Esclarecimento recíproco, social; aquecimento de relações humanas entre os galegos, antes de mais. As outras imagens do poema intensificam essa impressão: “trades”, “[semente]”/”froito”, “enxendrar vidas intactas” /”candor das inocencias”. A última estrofe preludia os anelos ou arelas angustiadas que os sucessivos poemas exprimem numa colusão irresoluta de esperança ou de vida ou de plenitude, por um lado, e, por outro, de morte ou desparecimento ou do nada a ameaçar não tanto a pessoa indivisa quanto a sociedade esfarelada da Galiza (já “Galicia” para muitos galeguistas). O poeta sente-se “voando no impreciso dos recendos”, “xardíns da miña alma”, que neutraliza a meio das precisões “tremendo no frío”, “carne rabuñada”, embora afinal (último verso) tente corrigir, em paradoxo, as expressões citadas mercê da construção sintaticamente anfibológica: “cos dedos das súas [das palavras?; da alma?...] mans de sol tan plenas [mãos plenas...?; palavras plenas...?; alma e carne plenas...?]”.
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Se os dous poemas introdutórios me induzem a comentar destarte, os dous conclusivos confirmam-me na hipótese de partida.
«A corrente levoume por enriba» é poema que se “produz” no passado, nesse passado ideal que nunca deveria ter desaparecido (talvez nunca atingiu a existência que se lhe costuma atribuir).
Contudo, apesar dos desejos em contrário, todo ele, o seu cotexto (ou contexto interior), procura convencer-nos da inexistência (ou da existência esmorescente, tanto tem) das “cousas” apontadas: da “area”, aliás “invisible”, das “pingas”, aliás “de imposible transparencia”, das “pálpebras do vento” (não dos “olhos”, mas do ‘pano’ que os esconde, quando os houver...), do “mariñeiro”, mas “de serodios soños” e ainda “nas estrelas”, etc., etc. Parece como se o poeta aspirasse a verificar a concordantia oppositorum que tivesse de patentear, intencionalmente, a coexistência de monstros e maravilhas, mas o que de facto evidencia é a inconsistência das entidades contraditas. A última estrofe deste poema (“A corrente levoume por enriba / das criaturas...”) confirma-me mais uma vez na impressão suscitada: Passividade, levidade ascética; mas atividade, fruição vitalista; “celeiros” a esconderem “luces daquelas vivas cores”: Para que serve a luz oculta, a luz que não ilumina a casa?
O derradeiro poema («Das árbores contemplo as follas novas») encerra o livro, mas (suspeito), sobretudo, encerra a história pessoal e social do poeta ou, o que vale igual, a história da Galiza encerrada na história pessoal de cada galego, de que o poeta, à partida, se tornou em porta-voz (apesar de tudo e contra todas as aparências que se quiserem).
Deixo de lado os paradoxos manifestos (reincidentes) de “follas novas... tenras... alegres e vizosas” e “murchas e secas podrecendo” definidores, segundo declara o poeta, da sua vida. Fico no que diz ficar: “xa só queda a materia insensible, o impalpable po cego, sen memoria polo vento.” Ainda que “memoria” nos debruça no cerne do povo (galego), no miolo do seu ser, que constitui não tanto a história (de que Castelão, lembro, abominava por ter mantido o povo na escravidão), quanto a tradição, a popular (em que Castelão baseia o futuro da Galiza), apenas reparo nos adjetivos “insensible”, “impalpable”, “cego” e infiro, impressionisticamente, que apontam para a morte, não apenas da pessoa, mas da sociedade em que a pessoa se conforma como tal: ‘insensibilidade’, ‘impalpabilidade’, ‘impossibilidade de ser vista’... porque já não lhe aparece ao poeta: Porque já não existe? Não é tão simples.
Com efeito, sinto nos quatro últimos versos um grito ou berro, articulado mas desesperado, à esperança: “Mais o que amei nalgún lugar un día / quizais ha de vivir nas fondas fragas, / nas augas claras, no frescor das herbas, / nos antigos carballos do meu val.” Digo que é ‘berro’ ‘articulado e desesperado’, porque a sua leitura me dita essa imagem distinta de desconfiança: ‘Não quero que desapareça nem a minha vida nem a vida da minha gente, mas, perante a evolução inescusável das “cousas”, refugio-me sob o sentimento que vem integrando a minha gente e a minha própria, quer dizer, a comunhão de humanos e natureza. Se aqueles desaparecem, esta perviverá’. Fé sensitiva, ou sensorial, ou sensual, lhe diria: Nada justifica que assim aconteça no futuro, mas o poeta cinge ser e tempo pessoais ao ser e tempo das “cousas” que sem dúvida continuarão sendo, apesar de tudo e sob qualquer aparência possível. Não é a eternidade transtemporal; é a pervivência intratemporal, aquela que ultrapassa o tempo e as “cousas”, sempre vivas, sempre dotadas de algum jeito de vida; porque o poeta e a sua gente se acham encarnados sensorialmente nele e nelas: Nascem da morte, que deveras nem sabem se é morte.
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Continuo (é outro dia) com umas breves observações sobre as duas partes em que o Professor Abeal (já poeta) divide o poemário.
A primeira está presidida por «Os ollos voan cara ós horizontes» e encerrada por «Á mañanciña vin o teu vigor»; a segunda, respetivamente, por «O tempo aniña lene entre as cousas» e por «Aqueles fondos vales van comigo». Deixo-me levar do autor no entendimento de, como em qualquer período bem elaborado, o início marcar a sequência, enquanto o fim a acaba, de modo que o exprimido ao longo dela fica transido e manifesto pelo dado nesses dous momentos definitórios.
Seja como for, a leitura conduziu-me a estimar ambas as partes do poemário não apenas complementares, mas, por isso mesmo, contrapostas:
Na primeira prevalece a alegria de viver, sustida, nem exuberante nem tímida só. Diria que, por classicizante, a recebemos natural, sem excessos; já o assinalei: sustida.
Na segunda, porém, evidenciam-se os conflitos por que decorre a existência, qualquer existência, a pessoal, a interpessoal, a social, a política. Lembro o acima apontado: por o existir humano se achar sempre ensumido em convivência com os outros, sempre outros apesar de tudo, o poetizar sobre tal existir (embora não o pretender o poeta, mesmo que o procure dissimular —não digo ocultar) sempre aparece co-existente, «socializado», quer dizer politizado (também no sentido clássico do termo). E se o existir socializado, politizado de referência é o da Galiza/Galicia...
Portanto, concluo: alegria de viver, de nadar no tempo como se em lagoa catúlica nos topássemos onde quer, mas sofrer ou, antes, tomar consciência do sofrimento de viver. Eis os dous pólos que, desde as minhas impressões de leitor, transitam (e são transidas) as duas partes do poemário.
Antes de passar a rever os poemas citados, ouso afirmar que o poemário, sendo radicalmente de amor ou, melhor, de amores, se acha redigido com tal delicadeza e recato que o amor fica como lenizado ou acaso disperso ... ou asperso: todos os versos podem ler-se em chave amorosa, mas... são como aroma leve e levitante que é percebido sem se deprecatar a pessoa submersa nessa atmosfera de segredos suaves apenas acenados.
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Examino já o poema que abre a primeira parte, «Os ollos voan cara ós horizontes».
O sentido do verbo que se lhes atribui, “voan”, é verificado na metáfora, “son paxaros”, em paradoxo (lembre-se o assinalado nas primeiras seções destas notas impressivas) com a imediata “dondos vagalumes”, mas recuperado no símil “cal andoriñas”. Portanto, a meu ver, no poema prevalece o hálito enobrecedor, significativamente dado em vocábulos ou expressões definidos pelo sema ‘luz’, complementada nalguns deles por ‘altura’: além de “vagalumes”, de “ollos” e “voan”, recolho “harmonia azul”, “[ascenden no] silencio claro”, “cumes”, “aguias”, “[fondais sacros da] luz”, “estrelas”.
Essa mensagem de esperança arredonda-se no último poema desta primeira parte: «Á mañanciña vin o teu vigor». A atmosfera enobrecedora igualmente predomina não sob a perspetiva da visão (mormente), mas da fruição, embora lenizada (segundo precisei): “vin” (“escuridade” excluída), “ollos”, “fermosura”, sim, mas “vigor”, “desvestir”, “plenitude” “apreixar”, “tremía”, “paixón” (explicado por “tolería”), “extenuarse”. É o mundo pessoal a consumar-se sem se consumir: tras o rapto que inicia o primeiro poema, o poeta frui a alegria estranha (ou alienante?) de viver em companhia. O ‘tu’, como o ‘eu’, ficam fixos, mas sem limites precisos. Já não é o “solpor”, a queda do dia, que apresentava o primeiro poema; é a “mañanciña”, esse momento em que as raiolas tímidas do sol anunciam esperanças e alvores. Mais uma vez, se considero o início e o fim do poema, topo o paradoxo indicial: “mañanciña” (de todos, tua?) e “miña” (“intemperie”, cultificação do popular “ventimperio”, como âmbito que possibilita o “extenuarse”...).
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A segunda parte abre-se por «O tempo aniña lene entre as cousas», aliás, quase ritornello no poema.
Decorre entre “consumir”, “esvair”, “desfazer” (na realidade ‘fazer-se solpor, noite escura sem luar’), face a “ferver (a vida)”, e a seguir “guardar (a vida no silêncio gris da eternidade)”. Mais uma vez advirto a concordantia oppositorum, sem solução de continuidade.
Coroa-se essa percepção (ou acaso a própria concordantia) na rede metaforizante dos versos finais: “silencio [ou morte] gris [sem cores, sem alegria, mergulhamento na tristura] da eternidade [gaveta ou caixão a quardar o tempo, já morto]: / cantiga [a quebrar aquele silêncio da morte] sempre bébeda [rapinada de excessos, contrários, portanto, à mesura no viver esmorescente ou apenas à mesura do morrer...] no vento [nem sei se o poeta pretende aqui ecoar aquela manifestação excelente da divindade?: ‘Deus só se manifesta nas epifanias suaves de vida e movimento’]”.
Em definitivo, é a saudade a que acaba por se impor. Assim o vejo no último poema desta parte, «Aqueles fondos vales van comigo».
De novo o paradoxo: ‘Tu’ é pessoa ou apenas ‘vida’, transpessoal (mais do que abstrata)? Se aquilo, aparece-me como que o poeta situa a pessoa na Natureza toda sem lhe assinalar um tempo ou lugar determinados, apenas “dondísimo horizonte de cores de agarimo”, “mol melodía”. Mas se, à partida, ‘tu’ fica identificado com ‘vida’, então esta acaba reduzida ou expandida no referido “dondísimo horizonte”, que, por sua vez, acaso aninhe quer no “agarimo pola miña ... pel”, quer apenas nesta, decerto “inviolable”. Prefiro, pela letra e pelo sentido, esta segunda hipótese.
Desse ponto de vista entendo que o poeta neste poema (e em toda a parte segunda) procure ensumir o leitor numa esperança agridoce e acaso por isso sem perfis últimos.
A metaforização (ou simbolização?) “vida”/”gaivota peregrina” é grandemente expressiva tanto pela anfibologia do adjetivo “peregrina”, quanto pelas origens que lhe são atribuídas: “mares máis lonxanos”, “fontes [próximas?]”, “estrelas da fermosa noite” [espaços tão longíncuos quanto ilimitados], que fica corroborado pelo “non o sei” com que o autor quebra liricamente a sequência transpessoal do poema. Aliás, “gaivota” orna-se da “frescura dos abeneiros e do orballo na herba”: o vegetal (“abeneiro” e “herba”) e o meteoro atmosférico (“orballo”) caraterizam a nota distintiva de ‘gaivota-vida’ que afinal se torna em “mol melodía”: evolução, que ninguém pretenderá explicar cientificamente, salvo na alquímia, mercê da qual a concreção inicial da “vida”, “gaivota”, sucessivamente se subtiliza em “frescura”, em “horizonte”, em “melodía”.
Está o poeta a tentar sublimar-nos, como Mestre Mateu da palavra, até nos introduzir nas esferas harmoniosas dos vinte e quatro anciãos, das suas melodias que acabam tecendo-se sensuais na melodia única de um Pantocrator-amendoeira em primavera sem tempo florescida?
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Foi tudo. Em definitivo, a lírica vale por transcendência mas sensível, frutivamente sensual. Honra ao poeta e Professor Abeal!